PT / ES
Horas
extraordinárias ou a
documentação de um tempo disjunto
The time is out of
joint. – Hamlet, Act 1,
Section 5
As
imagens intituladas Horas extraordinárias
fazem parte de uma série fotografada ao longo de dois anos no Museu Calouste
Gulbenkian, em Lisboa, nos dias de fecho ao público, quando as actividades de
manutenção e técnicas como as de limpeza, conservação ou iluminação tomam
lugar. Trata-se de uma observação atenta do espaço museológico nas horas entre situações:
uma sala de exposição que é remodelada, obras de arte que são retiradas para
serem restauradas, emprestadas ou substituídas por outras, abrindo espaço a
novas relações entre as peças de uma dada colecção. É durante este intervalo de tempo do espaço
museológico que Catarina Botelho (Lisboa, 1981) procura registar, e presenciar, uma temporalidade
específica, da mesma natureza que o “tempo suspenso” que encontrou nos domingos
de Inverno em certas zonas de Lisboa (Estrangeira
aqui como em toda a parte, 2015), durante as madrugadas no interior de
edifícios institucionais em São Paulo (Memória
descritiva, 2013), nos hammams de
Istambul antes do horário de abertura ao público (O tempo e o modo, 2011-12) –
tempos em que estes espaços
são esvaziados da sua actividade e funcionalidade. A artista chega a estes
lugares quando cessa o seu fluxo produtivo, quando uma determinada visibilidade
é apartada destes espaços.
É a invisibilidade deste tempo entre actos que é documentada nestas imagens. No caso particular
do espaço museológico, é através do registo da relação espaço/tempo, quando a
ausência de visitantes é substituída pelo trabalho que, ainda que aconteça
afastado do olhar público, tem como objectivo, precisamente, fazer com que este
se torne mais visível – limpando-o, iluminando-o, abrindo-o. É um trabalho
não-visível que tem como tarefa o melhoramento da visibilidade e por
consequência de valorização de um determinado capital, por via de uma
actividade pouco renumerada - trata-se também aqui de um registo de um tempo
capitalista. As imagens que integram Horas
extraordinárias, quando pensadas no seu fazer político, no estar neste
determinado tempo e nestes determinados espaços, podem ser entendidas em
continuidade com o ensaio visual de Louise Lawler em torno do museu pós-moderno
no livro On the museum’s ruins (1993)
de Douglas Crimp. Nele a fotógrafa contribuiu com um conjunto de imagens de
obras de arte em situações não visíveis ao grande público: acervos de museus,
interiores de casas de colecionadores, leilões, etc. Cerca de vinte anos separam-nos
das instâncias do mercado da arte abordadas por Lawler, mas creio que a grande
diferença é que tratando as duas fotógrafas o meio do mesmo ponto de vista, o de quem está no backstage, as invisibilidades tornadas
visíveis são distintas. Há como que um desviar do foco, ainda que o
enquadramento seja o mesmo: o de Lawler estará mais no espaço institucional e o de Botelho num tempo instituído ou em situações que resistam a este.
Time out of joint é uma expressão recorrente no contexto teórico da
arte contemporânea; lembra a formulação de Giorgio Agamben em O
que é o contemporâneo? (2009) mas também a ideia do com/temporâneo
proposta em Comrades of time (2010)
por Boris Groys. Uma derivação deste enunciado é mencionada por Maurice
Blanchot em L’Amitiè (1972) quando descreve o espaço a-histórico do
museu. Quando “googlamos” a expressão, a primeira referência que aparece é numa
fala de Hamlet. Hoje, este tempo, talvez corresponda aquele fora dos actos de produção. Um tempo de
resistência à lógica capitalista sobre o qual Catarina Botelho parece ter vindo
a ocupar-se e que neste trabalho encontrou uma correspondência num espaço que
propomos denominar de museu
descapitalizado. Por um lado, o espaço museológico encontra-se em crise
financeira mas também ontológica; e por outro, a evidência, à primeira vista
menor, de que na língua francesa a palavra museu
é escrita, maioritariamente, e ao contrário da língua portuguesa, com o «m» descapitalizado.
A dupla acepção da palavra que adjectiva este museu imaginário abre espaço a um conjunto de possibilidades de que
estas horas extraordinárias são documento.
Maria
do Mar Fazenda, Abril de 2016
Horas extraordinárias o la
documentación de un tiempo apartado
The
time is out of joint. – Hamlet, Act 1, Section 5
Las imágenes tituladas
Horas extraordinarias forman parte de
una serie fotografiada a lo largo de dos años en el Museo Calouste Gulbenkian,
en Lisboa, durante los días de cierre al público, cuando se procede a las actividades
de manutención y técnicas de limpieza, conservación o iluminación. Se trata de
una observación atenta del espacio museológico en las horas que transcurren entre situaciones: una sala de
exposición que se remodela, obras de arte que se retiran para ser restauradas,
prestadas o sustituidas por otras, abriendo espacio a nuevas relaciones entre
las piezas de una determinada colección. Durante este intervalo de tiempo del espacio museológico, Catarina Botelho
(Lisboa, 1981) busca registrar y presenciar
una temporalidad específica, de la misma naturaleza que la del “tiempo
suspenso” que encontró los domingos de invierno en ciertas zonas de Lisboa (Extranjera aquí como en todas partes,
2015), durante la madrugada en el interior de edificios institucionales en São
Paulo (Memoria descriptiva, 2013), en
los hammams de Estambul antes del
horario de apertura al público (El tiempo
y el modo, 2011/12) – tiempos en
los que estos espacios se vacían de su actividad y funcionalidad. La artista
llega a estos lugares cuando su flujo productivo cesa, cuando una determinada
visibilidad es apartada de estos espacios. (…)
Maria do Mar Fazenda, abril de 2016